Moçambique em análise por Luca Bussoti*

Especialista fala sobre o que tem preocupado a população moçambicana e as tensões entre a Renamo e Frelimo.
Por REDE ANGOLA.

Observando actuais conflitos em Moçambique, podemos dizer que estamos perante uma nova guerra?

A primeira questão a ser esclarecida é o que é que deveria-se entender por “guerra”. Simples ausência de paz? Ou algo a mais? Mas, deixando esses aspectos definitórios, e para evitar fugir à pergunta, eu diria que Moçambique viveu durante quase um ano numa situação de “guerra incipiente e concentrada”. Para dizer melhor: “incipiente” porque o conflito sempre se manteve a este nível, ou seja, usando mais a ameaça duma nova guerra do que praticando actos de guerra aberta. Isto não quer dizer que não tenha havido derrame de sangue e mortos, mas que provavelmente o objectivo, pelo menos por parte da Renamo, terá sido usar esta ameaça como alavanca para alcançar metas políticas. “Concentrada” porque o espaço das confrontações foi limitado, na larga maioria dos casos, à zona da Gorongosa (província de Sofala).

Como explica os antecedentes e a vontade para uma democracia mais horizontal, a composição da Comissão Nacional de Eleições criou a tensão política?

A questão fundamental que a Renamo colocou foi relativa à composição da CNE. Isto porque julgou-se que as eleições não podiam ser transparentes se o partido no poder, a Frelimo, tivesse continuado a controlar – directa ou indirectamente – a CNE. Não sei se o acordo alcançado dará maior estabilidade e credibilidade ao processo eleitoral: o elemento fundamental será tentar perceber o papel dos sete membros da sociedade civil. As experiências passadas foram bastante contraditórias, uma vez que, nas primeiras eleições gerais (1994), o Presidente da CNE, o Reitor da Universidade Eduarda Mondlane, Brazão Mazula, actuou de forma mais que satisfatória, ao passo que os seus sucessores (primeiro Jamisse Taimo, depois João Leopoldo da Costa) foram duramente criticados por supostamente não terem garantido a devida imparcialidade que devia constituir a base do seu trabalho.

O porta-voz da Renamo diz que o exército bombardou a Serra da Gorongosa; o jornal local O País informa que a Renamo tem atacado as suas antigas bases, onde o exército está instalado. Parece um jogo de manobras de diversão. De onde vem este descontentamento?

Julgo que é preciso distinguir: primeiro, o descontentamento existe e é patente, nas fileiras do antigo exército da Renamo. Com efeito, o nó principal reside no facto de que os dois antigos exércitos combatentes ao longo da guerra dos 16 anos não se terem integrado. Poucos elementos entre os “desmobilizados” da Renamo entraram no novo exército nacional, e ficaram praticamente de fora de qualquer processo económico, ao passo que os “frelinistas” viram as portas abertas a todos os níveis. Este é o motivo principal, julgo eu, do descontentamento dessas alas ainda armadas da Renamo. Os motivos económicos, portanto, misturaram-se com os políticos, numa fase – é bom enfatizar isso – em que a Renamo se encontra provavelmente em declínio eleitoral.
Infográfico
RA Mapa…

O porta-voz de Afonso Dhlakama e alguns especialistas afirmam que a Frelimo quer a morte do líder da Renamo. A escalada de violência e ameaças tem trazido muita preocupação à população?

A população, ainda com memória fresca da recente guerra, fica preocupada cada vez que existe uma ameaça concreta de retorno ao conflito. O grau de confiança para com partidos políticos e instituições resulta, em Moçambique, extremamente baixo neste momento: basta ver a percentagem dos votantes nas últimas eleições, gerais e autárquicas. Recentemente, nos finais de Outubro, o povo moçambicano, liderado pela chefe da Liga dos Direitos Humanos, Alice Mabote, organizou uma grande manifestação em prol da paz e contra os raptos que, naquela altura, perturbavam a vida quotidiana sobretudo da capital, Maputo. Em suma, se alguém, sobretudo dentro da Frelimo, queria uma nova guerra, a sociedade civil tem desempenhado um papel importante pela primeira vez, opondo-se a esta perspectiva. Trata-se de um actor social de certa forma novo, uma vez que, no passado, a postura prevalecente era de passividade.

Em linhas gerais, que consequências sociais este momento de instabilidade provoca à população?

Acima de tudo, alguns mortos, mesmo entre os civis. E isto é fortemente constrangedor. Segundo, sobretudo na zona Centro e, em parte, no Norte, o temor para um retorno ao conflito em grande escala, que tem levado inclusive a uma parcial paralisação de algumas actividades económicas. Terceiro, uma reacção provavelmente inesperada pela classe política local, determinada a contrariar qualquer tentativa de novo conflito. Talvez possa ser esta a nota positiva dessa prolongada crise político-militar em Moçambique, juntamente com a definitiva divisão duma imprensa pública, sempre mais subjugada ao poder governamental e presidencial, e uma parte da privada (nomeadamente a MediaCoop, que edita, entre os outros, o jornal Savana, Canal de Moçambique, dirigido por Fernando Veloso, A Verdade, a TIM e algumas rádios comunitárias do Centro-Norte e poucos outros órgãos independentes) que se ergueu em defesa do estado de direito e da paz.

Luca Bussoti, Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL*