De outras margens

A nova ressovietização

por MARIA JOÃO TOMÁS

Hillary Clinton em dezembro do ano passado disse, em Dublin, que Putin pretendia ressovietizar a Federação Russa. Putin, por seu lado, tem vindo a afirmar que um dos piores acontecimentos do século XX foi a queda do regime soviético.

A festa oficial que se fez na Praça Vermelha, no dia 18, para celebrar o Tratado de Anexação da Crimeia, parece ser a prova de que Putin tem mesmo ideias saudosistas e pretende refazer a União Soviética. A Transnistria e a Gagauzia, duas regiões autónomas da Moldávia, bem como o Sul e o Leste da Ucrânia, podem ser as seguintes a pedir a anexação, fazendo também referendos separatistas para as legitimar. Está em causa a opção entre a Rússia e a União Europeia, o que é uma escolha difícil dado a má situação económica que se vive em ambos os lados. A limitação dos direitos individuais que a Amnistia Internacional vem denunciado atualmente na Federação Russa, contrastando com a queda do investimento e dos negócios privados, fazem temer um regresso ao passado comunista, acentuado pelo crescente investimento do Governo russo na indústria de armamento.

Trazer de novo o comunismo não parece ser o objetivo, porque a URSS caiu exatamente por causa do falhanço da sua ideologia, e até a vizinha China se rendeu ao capitalismo. Outros ideais se levantam, mais estratégicos, geopolíticos e de segurança. Se de um lado Moscovo ambiciona recriar a sua área de influência soviética, a Washington assusta esta pretensão, numa altura em que está a perder a hegemonia mundial, conseguida nas décadas seguintes à queda da URSS. No Médio Oriente, já o disse, Putin ganha terreno, não só apoiando a saída dos regimes da Irmandade Muçulmana, que Obama tanto gostava, como na Síria, onde as forças de Assad e o Hezbollah, escudados e armados pela Rússia, estão a reconquistar territórios ganhos pela oposição, apoiada pelos EUA e União Europeia (UE). Por outro lado, a perspetiva de incluir antigos territórios soviéticos na NATO, tal como se estava a aliciar a Ucrânia, é um pesadelo que Putin não pode permitir acontecer. Energeticamente, o Norte e Centro do Velho Continente estão dependentes de Putin, e pela Ucrânia e Crimeia passam os principais gasodutos e oleodutos. Por outro lado, em Sebastopol está uma base estratégica russa, e agora, com anexação da Crimeia, a Rússia não só a assegura como fica ainda com controlo do mar Negro, além de se perspetivar a incorporação da companhia de gás da Crimeia, Chernomorneftegaz, que é também subsidiária da Naftogaz da Ucrânia. Por muito que se questione o que se está a passar na Crimeia, Cristina Kirchner, a Presidente Argentina, veio lembrar que segundo a Carta das Nações Unidas um povo tem direito à autodeterminação, fazendo comparação com o referendo do ano passado nas Malvinas, não contestado pela ONU, e onde o povo votou a favor da permanência deste arquipélago no Reino Unido. Em 1982, o Reino Unido consolidou a posição nas Malvinas pela força das armas. Também Putin se defende dizendo que os EUA e a UE apoiam o atual regime ucraniano que substitui Ianukovich, o Presidente democraticamente eleito pelos ucranianos e deposto pelos rebeldes pró-europeus. Lembre-se que, em julho do ano passado, uma situação parecida ocorreu no Egito, mas Obama e Bruxelas vieram defender Morsi, ficando contra os 36 milhões de egípcios que saíram à rua a pedir a queda do Governo da Irmandade Muçulmana. Na Síria, Bachar al-Assad também foi “democraticamente” eleito, e agora nem sequer admitem que ele se recandidate. Muitos outros casos poderiam ser dados como exemplos, mas, sem dúvida, o Kosovo é o mais emblemático de todos. Nem sempre os argumentos utilizados em política internacional se regem pelos mesmos pesos e pelas mesmas medidas. A dualidade de critérios prende-se com interesses geoestratégicos, políticos e de segurança. Na Crimeia, nem a Rússia nem os EUA têm argumentos válidos, mas sim justificações muito concretas. Quem fica a perder, verdadeiramente, é a União Europeia, que está economicamente debilitada, é dependente militarmente da NATO e energeticamente da Rússia. Crescem também os nacionalismos, podendo contagiar regiões europeias com intenções separatistas, mas que também arrastam fobias, como o antissemitismo que o novo Governo da Ucrânia está a trazer ao de cima, ou a apreensão pelo futuro da população tártara da Crimeia. As sanções a aplicar a Moscovo também em nada beneficiam Bruxelas, que se isola de um parceiro importante. Ganham Obama, que nada tem a perder, e Putin, que tem tudo a ganhar.

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